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Memória em chamas: incêndios em patrimônios históricos, culturais e científicos

Antonio Fernando Berto, Laboratório de Segurança ao Fogo e a Explosões do IPT

Publicado em: 10/07/2020

Texto: Redação AECweb/e-Construmarket

Coordenação técnica: Adriana Camargo de Brito
Comitê de revisão técnica: Adriana Camargo de Brito, Cláudio Vicente Mitidieri Filho, José Maria de Camargo Barros, Luciana Oliveira e Maria Akutsu
Apoio editorial: Cozza Comunicação

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A segurança contra incêndios depende de ações de natureza preventiva e protetora (fonte: Celso Pupo/shutterstock)

10/07/2020 | 15:48 - Quando se considera a questão da segurança contra incêndio toma-se como prioridade a integridade física das pessoas. Essa é a regra e, por vezes, a atenção recai apenas sobre este objetivo. Entretanto, todo incêndio afeta a sociedade como um todo, mesmo quando uma única edificação é destruída, ainda que seja de maneira difusa. Além das perdas materiais, que podem ser imensas, não se deve desconsiderar a necessidade de controle de perdas sociais, representadas especialmente por danos ao meio ambiente, fechamento de empresas e consequente perda de postos de trabalho e perdas de patrimônios históricos, culturais e científicos.

O incêndio ocorrido em 15 de junho de 2020 no Museu de História Natural da UFMG, em Belo Horizonte, traz de volta à baila esta questão. O antecederam, nos anos de 2018 e 2015, respectivamente, os incêndios desastrosos do Museu Nacional no Rio de Janeiro e do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.

Temos passado no Brasil por um conjunto muito importante de incêndios, gerando perdas irrecuperáveis de nossos patrimônios históricos, culturais e científicos. Fazendo uma retrospectiva de casos ocorridos em São Paulo nos últimos anos, agregam-se à destruição do Museu da Língua Portuguesa outras tantas tragédias: em agosto de 2008, o Teatro Cultura Artística foi totalmente destruído; em maio de 2010, o incêndio no Instituto Butantan destruiu acervo científico de valor inestimável; em novembro de 2013, o Anfiteatro do Memorial da América Latina foi extensamente danificado; em fevereiro de 2014, o Centro Cultural do Liceu de Artes e Ofício foi devastado por um grande incêndio; e, em fevereiro de 2016, foi a vez de parte do acervo da Cinemateca Brasileira.

RISCO DE INCÊNDIO

Para que o edifício atenda a condições essenciais de segurança, é necessário que o risco de surgimento do incêndio seja rigorosamente controlado e que, ainda sim, caso ocorra, os danos sejam limitados às imediações do local onde se iniciou. Desta forma, a segurança contra incêndio dos edifícios depende de dois tipos de ações: as de natureza preventiva e as de natureza protetora. As primeiras estão voltadas à limitação do risco de o foco de incêndio surgir na edificação. As outras estão associadas à minimização dos danos que o incêndio, a partir de seu foco, é capaz de causar.

As ações de prevenção exigem que todas as atividades desenvolvidas no edifício, e ao seu redor, ao longo de sua vida útil sejam realizadas considerando o risco de surgimento do foco de incêndio. As edificações acessíveis ao público, em particular, apresentando ou não bens expostos, exigem vigilância permanente para evitar princípios de incêndios criminosos.

É importante destacar que o Brasil conta com tecnologia para apoiar a implantação destas disposições, incluindo medidas de natureza passiva e ativa: proteção das estruturas de madeira contra a ação do incêndio; proteção de superfícies e revestimentos de madeira de forma a limitar seu envolvimento em situações de início de incêndio; portas ou cortinas resistentes ao fogo que podem ser camufladas e que se fecham automaticamente em situação de incêndio; elementos construtivos envidraçados de compartimentação; sistemas de detecção e alarme de incêndio, cuja instalação representa interferências mínimas na ocupação da edificação; assim como sistemas manuais ou automáticos de extinção de incêndio etc.

A responsabilidade pela segurança contra incêndio destas edificações que se constituem ou abrigam patrimônios históricos, culturais e científicos, durante sua fase de operação, recai sobre o corpo diretivo das instituições que as ocupam. Os gestores devem dar, mandatoriamente, a devida atenção ao tema durante toda a vida útil da edificação.

MEIOS DE EXTINÇÃO

A instalação de sistemas hidráulicos de combate ao incêndio no interior da edificação, como propõem as normas brasileiras ABNT NBR 13714 – Sistemas de hidrantes e de mangotinhos para combate a incêndio e ABNT NBR 10897 – Sistemas de proteção contra incêndio por chuveiros automáticos — Requisitos, eventualmente requererá estratégia de projeto apropriada para os edifícios históricos onde estão guardados/expostos patrimônios de valor inestimável, de modo a tornar possível e suficientemente discreta a instalação destes sistemas. Estes projetos devem ser elaborados, em nível executivo, por equipe que congregue bons especialistas nestes sistemas e nas características do edifício/patrimônio que será protegido.

Apesar do possível sucesso desta ação refinada de projeto, sempre se poderá argumentar contrariamente ao uso destes sistemas, considerando primeiramente que promoverão alterações nas características originais das edificações, especialmente nas tombadas, que atentarão contra conceitos referenciais do patrimônio. A ideia não está incorreta, mas dada a importância destes sistemas para a segurança contra incêndio sempre será possível destacar tal “descaracterização” como algo que está notadamente à parte do patrimônio e que tem uma função específica, atemporal e sem qualquer identificação com o bem que está protegendo.

Ingressando na fase de execução destes sistemas, novamente profissionais altamente qualificados devem estar envolvidos. A instalação deve ser seguida de ações apuradas de comissionamento, envolvendo até mesmo a operação assistida dos sistemas por parte dos instaladores dos sistemas, visando detectar possíveis falhas precoces e treinamento das equipes que irão operar os sistemas.

Uma segunda argumentação possível contrária à instalação de sistemas hidráulicos de combate a incêndios diz respeito a possíveis danos provocados pela água decorrente de vazamentos acidentais ou da operação dos sistemas em situação de incêndio.

Não se pode dizer que estes sistemas estejam isentos de problemas de vazamento, mas pode-se dizer que, caso sejam adotadas as ações recomendadas acima, relativas ao projeto, instalação, comissionamento, operação e manutenção dos sistemas, este risco será enormemente reduzido. É certo que as perdas provocadas pela água empregada no combate serão significativamente menores do que um incêndio sem combate será capaz de provocar. Esta é uma questão importante que se deve compreender, visto que decorre do correto entendimento do papel que estes sistemas devem desempenhar em situação de incêndio na edificação: tratam-se de sistemas concebidos para entrar em ação antes que a inflamação generalizada seja alcançada no ambiente de origem do incêndio, ou seja, enquanto o incêndio atinge apenas as imediações do foco.

O combate automático deve ser sempre assistido pelo combate manual e de preferência antecipado por este. Para isto, a condição ideal corresponde à rápida atuação da brigada de incêndio que, de modo ideal, deve realizar uma intervenção bem-sucedida apenas com o emprego de extintores de incêndio. Caso isto não seja possível, a brigada deve fazer uso do sistema de mangotinhos e, em último caso, do sistema de hidrantes.
Sempre será necessário avaliar, desde o projeto desses sistemas, se a atuação do socorro externo do Corpo de Bombeiros poderá se desenvolver de maneira suficientemente rápida. Note-se que, aproximadamente, 85% dos municípios brasileiros não possui postos de Corpos de Bombeiros.

A existência de brigada de incêndio, composta por equipe de bombeiros profissionais civis, nas condições definidas na norma brasileira ABNT NBR 14608:2007 – Bombeiro Profissional Civil será sempre necessária. Tal brigada deve conhecer as características da edificação e desenvolver suas ações com base em um Plano de Emergência elaborado por especialistas com o apoio do corpo diretivo da instituição que congrega edificações que compõem ou abrigam patrimônios históricos, culturais/artísticos e científicos.

DETECÇÃO E ALARME

O sistema de detecção e alarme de incêndio também deve ser necessariamente instalado nessas edificações. Os mesmos cuidados de projeto, implantação, comissionamento, operação e manutenção, expostos para os sistemas de extinção, devem ser adotados para este sistema, cujo papel, no todo da proteção, é detectar o incêndio ainda em estágio incipiente, alertar a brigada de incêndio e o Corpo de Bombeiros. Todos estes agentes, a partir deste alerta, devem agir de forma coordenada em obediência a um Plano de Emergência.

Este Plano deve ser de conhecimento do Corpo de Bombeiros mais próximo da edificação, designado para fazer o primeiro atendimento ao local. O tempo-resposta do Corpo de Bombeiros deve ser conhecido e a agilização das ações a partir de sua chegada ao local deve ser considerada neste Plano. A brigada composta por bombeiros profissionais civis deve antecipar as ações, de acordo com as necessidades impostas, em busca da redução máxima de perdas, iniciando pelas vidas humanas. Para isto, a brigada deve estar aparelhada de maneira compatível com as ações que devem desenvolver, conforme estabelecido no Plano de Emergência.

Os sistemas de detecção e alarme e incêndio, protegendo as reservas técnicas, podem ser empregados também para comandar a operação de sistemas especiais de extinção automática de incêndio com o emprego de gases limpos, garantindo proteção máxima para obras e materiais de valor inestimável.

ROTAS DE FUGA

Qualquer ambiente ocupado deve oferecer, como condição essencial, meios rápidos e seguros para o abandono. As rotas de fuga providas nas edificações, independentemente de serem tombadas ou históricas, devem ser garantidas. Em muitas destas situações o cumprimento extensivo da norma brasileira ABNT NBR 9077 – Saídas de emergência em edifícios – poderá não ser possível.

O abandono rápido e seguro da edificação se constitui em aspecto primordial da segurança contra incêndio, pois tem papel destacado para garantir a segurança dos ocupantes em situação de incêndio. Processos de abandono simulados computacionalmente, com o emprego de modelos de movimentação de pessoas, permitem identificar as deficiências da edificação que restringem a rapidez de abandono. Um conjunto de simulações pode ser executado, verificando-se o efeito das mudanças possíveis de leiaute e mesmo de redução da lotação admitida para a edificação, subsidiando a elaboração do Plano de Abandono e definindo critérios para a implantação dos sistemas de sinalização de emergência e de iluminação de emergência.

PODER DE POLÍCIA

De acordo com reportagem publicada na Folha de São Paulo1 o prédio do Museu Nacional não tinha autorização do Corpo de Bombeiros para funcionar, pois não atendia aos requisitos básicos de segurança. Ainda segundo os Bombeiros, o prédio não tinha o Certificado de Aprovação da Corporação, que determina se o local está ou não regular, considerando a legislação estadual de segurança contra incêndio. Uma observação importante que consta desta reportagem dá conta do seguinte: os bombeiros não informaram por que o local, mesmo sem o Certificado de Aprovação, continuava funcionando e recebendo público normalmente.

Uma atribuição legal conferida aos Corpos de Bombeiros Militares diz respeito à fiscalização de edificações e áreas de risco, ou seja, o poder de polícia para fiscalizar o cumprimento das medidas de segurança contra incêndios previstas na Regulamentação de Segurança Contra Incêndio, independentemente de solicitação externa. No caso de São Paulo, essa atribuição é dada pela Lei Complementar nº 1.257, de 06 de janeiro de 2015, que institui o Código Estadual de Proteção Contra Incêndios e Emergências, e se concretiza por meio do Decreto Estadual 63.911, de 10 de dezembro de 2018, que institui o Regulamento de Segurança Contra Incêndios das Edificações e Áreas de Risco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As perdas sociais decorrentes da destruição de patrimônios históricos, culturais e científicos nos incêndios que vêm ocorrendo no Brasil nos últimos anos, como foram os casos do Museu da Língua Portuguesa, do Anfiteatro do Memorial da América Latina e do Museu Nacional e, muito recentemente, do Museu de História Natural da UFMG, definitivamente devem servir de alerta: é necessário adotar ações urgentes com o intuito de minimizar o estado depauperado em que se encontra a segurança contra incêndio dessas edificações no Brasil.

Minicurrículo do autor

Antonio Fernando Berto – é Engenheiro Civil com mestrado em Arquitetura e Urbanismo. Chefe do Laboratório de Segurança ao Fogo e a Explosões do IPT. Coordenador de diversos trabalhos de pesquisa na área de segurança contra incêndio, envolvendo a investigação de grande número de incêndios no Brasil. Coordenador das Comissões de Estudos de Reação ao Fogo dos Materiais e de Vedações Corta-Fogo do CB 24 da ABNT