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Como capacitar profissionais para a industrialização da construção?

Construtor acredita que a falta de mão de obra vai forçar as empresas a adotarem novos sistemas construtivos. E os fornecedores das tecnologias vão homologar equipes especializadas na execução

Publicado em: 09/01/2024

Texto: Eric Cozza

O grande fantasma da construção civil nacional nos dias de hoje é a falta de mão de obra. Empresários, executivos e pessoal de campo têm se queixado da crescente dificuldade de encontrar equipes minimamente qualificadas e dispostas a trabalhar nos canteiros. Se o mercado esquentar um pouco mais, é quase certo que faltarão operários.

O perfil artesanal do setor, aliado ao trabalho braçal pesado, estaria afastando os profissionais das obras. A solução mais apontada tem sido a industrialização dos canteiros e a adoção de novos sistemas construtivos. Mas como fazer isso de uma hora para outra, sem a necessária curva de aprendizado por parte das construtoras, sem mão de obra e fornecedores preparados?

Afinal, se o Brasil constrói praticamente da mesma forma há dezenas de anos e o setor nunca se ocupou, de fato, com a capacitação em massa dos trabalhadores, será que isso vai acontecer agora quando se fala em construção offsite e canteiros como locais de montagem?

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Para falar sobre esse assunto, nós convidamos um profissional que defende, há muitos anos, a industrialização da construção no Brasil. O engenheiro Luiz Henrique Ceotto passou por grandes empresas do setor, como Encol, Inpar e Tishman Speyer. Hoje está à frente da Urbic, incorporadora e construtora que aposta, desde a sua fundação, em soluções ágeis e industrializadas. Ouça o podcast e/ou leia entrevista na íntegra, a seguir:

AECweb – Como capacitar profissionais para a industrialização da construção?

Luiz Henrique Ceotto – Quando há industrialização na construção civil, normalmente as construtoras se tornam general contractors. Trata-se de algo relativamente comum em São Paulo, mas ainda pouco observado no restante do Brasil. Na grande maioria dos estados brasileiros, as construtoras têm mão de obra própria, o que pressupõe a existência de determinados materiais básicos e os artesãos encarregados de trabalhar com eles. Quando se trata de industrialização da construção, há uma visão sobre o sistema, não mais sobre os materiais. E o sistema é desenvolvido pela indústria, por fornecedores especializados. É o que, normalmente, acontece no mundo inteiro. Esses fornecedores de sistemas costumam ter mão de obra homologada. Não são, necessariamente, verticalizados. Ou seja, homologam empresas, muitas vezes familiares, que montam o sistema com uma produtividade muito alta. Os fornecedores oferecem uma garantia da efetividade da solução. Então, gradativamente, as construtoras vão se transformar em general contractors, ou seja, gestores e contratantes desses sistemas. Sem mão de obra própria. As equipes estarão mais ligadas – não do ponto de vista trabalhista, mas tecnicamente – aos fornecedores de sistemas.

Banner sobre inspeções de qualidade em obras. Homem posicionado à direita com um prédio em construção ao fundo.

AECweb – Faltam no Brasil fornecedores para a construção industrializada, ou seja, uma cadeia de sistemistas, como acontece, por exemplo, na indústria automobilística? Como resolver isso?

Ceotto – Nós temos, aqui no Brasil, sistemistas de praticamente todas as tecnologias disponíveis no mundo. Só que ninguém usa. Então, ficamos naquele dilema: o que vem primeiro? O ovo ou a galinha? Achamos que não temos sistemistas porque, na verdade, ninguém usa grande parte dos sistemas industrializados que estão por aí. São subutilizados. A partir do momento em que forem empregados em larga escala, tenho certeza que a formação de mão de obra vai vir junto. E esses sistemistas vão ampliar as suas redes de prestadores de serviços ligados a essas tecnologias, de uma maneira muito rápida. Hoje, ainda não há demanda. É muito baixa.

“O imposto pago pela construção convencional é muito baixo quando comparado ao da industrializada. Esse é um grande problema. (...) O segundo é o desinteresse pela obra rápida
Luiz Henrique Ceotto (Urbic)

AECweb – Na sua opinião, qual é o maior entrave para a industrialização do setor? Trata-se de uma questão cultural (“sempre fiz assim e deu certo”), financeira (mão de obra abundante e barata) ou política (falta de incentivo ou até penalização tributária dos sistemas construtivos industrializados)?

Ceotto – 
Vejo dois fatores preponderantes. Primeiro, o sobrecusto artificial imputado pela tributação de produtos industrializados, que hoje pagam IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). O produto artesanal, aquele de empilhar tijolos, paga somente ISS (Imposto sobre Serviços). Então, só com IPI mais ICMS, a solução industrializada já sai de 20% a 25% mais cara. A maior parte dos materiais empregados para empilhar tijolos não paga ICMS ou tem uma alíquota muito baixa. E a mão de obra, que é um item muito relevante, paga 2% a 5%. É um tributo municipal, então, dependendo da cidade, pode-se pagar 1%. Em resumo, o imposto pago pela construção convencional é muito baixo quando comparado ao da industrializada. Esse é um grande problema.

“O prazo entre a compra na planta e o início da obra é de 9 a 12 meses. Depois disso, um empreendimento que poderia ser feito em um ano, é executado em 3 ou 4 anos. Tudo para dar tempo de o cliente poder pagar esses 20% a 30%. Para, depois, vir o banco e financiar o restante”
Luiz Henrique Ceotto (Urbic)

AECweb – E o segundo fator?

Ceotto – O segundo problema é o desinteresse pela obra rápida. O cliente do mercado residencial, que representa cerca de 60% de tudo que se constrói no Brasil, não é preparado para o ato de comprar. Costumo brincar que o comprador de casa própria é um incauto. Sai para ir à padaria e, no meio do caminho, resolve comprar um apartamento, sem entrar com praticamente nada. Na verdade, ele finge que compra, nós fingimos que vendemos e aí encaramos todo o tipo de problema ao longo do tempo como, por exemplo, os distratos. Como não há poupança prévia e os bancos só financiam de 70% a 80% do valor do imóvel, somos obrigados a dar prazo para ele. O percentual de entrada é pago pelo cliente durante as obras. O Brasil ainda é um país pobre, no qual as pessoas não conseguem arcar com 20% a 30% do imóvel logo de cara. O prazo tem que ser maior. Por isso, o intervalo entre a compra na planta e o início da obra é de 9 a 12 meses. Depois disso, um empreendimento que poderia ser feito em um ano, é executado em 3 ou 4 anos. Tudo para dar tempo de o cliente poder pagar esses 20% a 30%. Para, depois, vir o banco e financiar o restante.

“Vai acontecer o que já houve na agricultura: sair de um setor super atrasado, como hoje somos na construção civil em relação ao mundo, para um dos mais avançados do planeta”
Luiz Henrique Ceotto (Urbic)

AECweb – E a questão cultural?

Ceotto – O ser humano é resistente às mudanças, principalmente no nosso setor, que é muito pouco desafiado. Mas qualquer suscetibilidade será vencida rapidamente pela questão econômica. Se, de alguma maneira, removermos os entraves financeiros, em questão de pouquíssimos anos, não teremos mais nenhum empresário pensando em empilhar tijolo. Precisamos eliminar essa artificialidade do tributo que onera pesadamente a constituição industrializada. E tudo em nome da ilusão de a construção convencional gerar muitos empregos. Só que já está faltando mão de obra. Esse era um discurso de 10 anos atrás. Temos um setor no qual se trabalha em um ambiente hostil, com barulho, muito pó de cimento, de gesso e poeira. É um lugar inseguro. Há muito esforço físico e as atividades são penosas. Ora, o filho do pedreiro ou do carpinteiro não quer mais isso. O mercado, hoje, oferece uma série de outras alternativas. O jovem prefere ser influencer, entregador ou qualquer outra coisa melhor do que trabalhar como operário da construção civil.

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AECweb – Temos saída viável no curto ou médio prazo?

Ceotto – Creio que temos. Se a reforma tributária conseguir equalizar os impostos entre a construção industrializada e a convencional, isso vai eliminar o gap de custo entre as duas formas de construir e dar oportunidade à industrialização. Outro ponto importante: preparar o cliente para a compra. Hoje, o cliente é um desavisado. No passado, nós tínhamos instrumentos de poupança que preparavam, durante 3 a 4 anos, o cliente para comprar. Ele poupava previamente ao invés de pagar esses 20% a 30% ao longo da obra. Era a poupança programada da Caixa Econômica Federal, que oferecia até juros subsidiados. O comprador poupava durante alguns anos e recebia uma carta de crédito no valor de cinco vezes aquilo que havia depositado. Ora, carta de crédito é dinheiro na mão. Se o comprador tem o recurso disponível, por que vai se preocupar em adquirir um apartamento na planta? O setor, portanto, tem que focar nesses dois itens: fazer uma gestão junto à área financeira, de modo a preparar os clientes para a compra antes e não durante a obra. E pressionar o governo para que a isonomia tributária aconteça o mais cedo possível. Feito isso, teremos uma revolução no setor em questão de 5 a 10 anos. Vai acontecer o que já houve na agricultura: sair de um setor super atrasado, como hoje somos na construção civil em relação ao mundo, para um dos mais avançados do planeta. Não tenho dúvida de que o grande salto da construção civil está por acontecer. Mas esses dois itens devem ser resolvidos. A questão cultural se resolve. É só botar a frigideira para funcionar. Os empresários pulam e resolvem o problema. Afinal, não temos nenhum problema de DNA.

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Colaboração técnica

Luiz Henrique Ceotto  – Engenheiro civil com mestrado em engenharia de estruturas pela Universidade de São Paulo, possui também certificado executivo em estratégia e inovação pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology). Atuou na direção técnica da Encol, Inpar e Tishman Speyer, alcançando um total de mais de 800 prédios construídos sob a sua orientação. Professor visitante da Escola Politécnica da USP, possui dois livros publicados e hoje é sócio da construtora e incorporadora Urbic.