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O que é recalque diferencial nas fundações?

Imagine, por exemplo, que você tem uma estrutura apoiada em dois elementos de fundação e um deles se desloca ou se rebaixa mais do que o outro. Essa é uma definição simples de uma das causas mais graves de fissuras e trincas em edificações

Publicado em: 07/11/2022

Texto: Eric Cozza

foto de uma pessoa segurando uma espátula e uma tabua com argamassa líquida em cima
Caso clássico de recalque diferencial no Brasil, edifícios na cidade de Santos-SP demandaram reforço das fundações e reaprumo. Monitoramento das edificações desde a fase de construção pode atenuar as consequências ou até evitar esse tipo de problema (Imagem: Shutterstock)

Uma das patologias mais sérias em fundações de edifícios, o recalque diferencial é um termo utilizado na engenharia civil para designar o fenômeno que ocorre quando uma edificação sofre um rebaixamento.

Um caso clássico de recalque diferencial, que acabou ficando famoso em todo o País, aconteceu em Santos, no litoral paulista, quando alguns edifícios acabaram, literalmente, ficando tortos.

O recalque diferencial é uma das causas mais sérias de trincas e rachaduras em edificações. Isso ocorre porque uma parte da obra rebaixa mais do que a outra, gerando esforços estruturais não previstos e podendo até levar ao colapso do edifício.

Para nos ajudar a entender melhor a patologia, convidamos para o podcast AEC Responde a Engª Gisleine Coelho de Campos, pesquisadora do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo), mestre e doutora na área de geotecnia. Confira abaixo a entrevista.

AECweb Responde – O que é recalque diferencial em fundações?

Gisleine Coelho de Campos – Sob a ótica das estruturas, podemos definir três tipos de recalques: temos aquele simples, puro, que classificaríamos como o deslocamento de um elemento de fundação em seu valor absoluto, olhando um ponto de maneira isolada. O recalque diferencial se caracteriza quando estamos comparando dois diferentes pontos. Imagine que você tem uma estrutura apoiada em dois elementos de fundação e um deles se desloca mais do que o outro. Essa diferença de deslocamentos chamamos de recalque diferencial. E a terceira definição é quando falamos sobre o recalque diferencial específico: pego essa diferença entre os dois pontos e divido pela distância entres eles. É esse recalque diferencial específico que nos chama mais a atenção, porque se esses pontos estiverem muito próximos, eventualmente, uma pequena diferença de recalques pode gerar uma grande distorção na estrutura. Gerando, aí sim, patologias como trincas e fissuras, chegando ao limite máximo de colapso de algum elemento estrutural ou até da estrutura como um todo. Então, trabalhamos sempre com essas três definições: o recalque, olhando para um ponto isolado; o diferencial, quando comparamos dois diferentes pontos; e o específico, que é a comparação dos dois pontos dividido pela distância entre eles.

“Temos que olhar o solo em si, procurar investigá-lo e conhecer suas propriedades da melhor forma possível. Para isso, a engenharia dispõe de uma série de ferramentas. Sondagens e ensaios de campo, eventualmente complementados por testes de laboratório, vão nos oferecer um panorama de como um determinado tipo de solo se comporta quando submetido a cargas externas”
Engª Gisleine Coelho de Campos

AECweb Responde – Quais são as principais causas para esse tipo de ocorrência e como evitá-la?

Gisleine – Temos diversos fatores que podem gerar ou contribuir para a aceleração ou desenvolvimento do recalque. Em geral, estão associados ao comportamento dos solos. Temos diferentes tipos de solos que, sob o carregamento da edificação, acabam tendo comportamentos distintos, em função do tipo de elemento de fundação adotado. Alguns solos são mais suscetíveis aos recalques porque possuem, na sua constituição, maior volume de vazios e, portanto, acabam se deformando mais. Isso associado ao tipo de fundação, mais rasa ou profunda, vai ter um comportamento diferente, em termos de recalque. Temos, então, uma parcela que depende do tipo de solo e outra do tipo de estrutura. E temos também, eventualmente, ações externas à própria edificação. O caso dos edifícios em Santos é um clássico onde o adensamento ocupacional em uma região, a construção de prédios muito próximos uns aos outros acabou gerando problemas de recalques diferenciais. Eventualmente, uma edificação vizinha pode provocar uma alteração no estado de tensões no maciço de solo e gerar um comportamento diferente. Temos que olhar o solo em si, procurar investigá-lo e conhecer suas propriedades da melhor forma possível. Para isso, a engenharia dispõe de uma série de ferramentas: sondagens e ensaios de campo – eventualmente complementados por testes de laboratório – vão nos oferecer um panorama de como um determinado tipo de solo se comporta quando submetido a cargas externas. Vamos ter que analisar também as diversas opções de fundações que podem ser utilizadas para a construção de uma edificação. E sempre ter um olhar sobre o entorno. O que está acontecendo ao redor da minha obra? Há outras construções em execução? Há escavação ou obras subterrâneas próximas que podem alterar a condição desse terreno? É preciso ter um olhar amplo. É importante verificar a vizinhança, saber o que está acontecendo ali na região que você já construiu, está executando ou pretende desenvolver um empreendimento.

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AECweb Responde – É possível fazer uma detecção precoce do problema?

Gisleine – Sim. Temos hoje diversas opções em termos de instrumentação geotécnica. Uma boa prática de engenharia seria monitorar o comportamento dos recalques, por meio de uma instrumentação específica, desde o início das obras. Infelizmente, não é uma prática corrente aqui no Brasil, mas se colocássemos instrumentos na fase de construção, poderíamos monitorar cada etapa, cada concretagem de laje, cada novo pavimento executado. Saberíamos, por exemplo, se todos os apoios estão se comportando de maneira uniforme ou se algum deles apresenta uma tendência de comportamento diferente. E aí poderíamos tomar ações corretivas antes mesmo da obra concluída.

“Muitas vezes, as pessoas ficam preocupadas com o aparecimento de trincas e fissuras, que possuem um impacto visual. E querem logo fechá-las sem conhecer a causa real dessas aberturas. O primeiro passo é tentar identificar a origem. Se for, realmente, um problema de recalque diferencial, isso precisa ser tratado primeiro”
Engª Gisleine Coelho de Campos

AECweb Responde – Como seria tal instrumentação? Por sensores?

Gisleine – Uma maneira muito simples de instrumentar é com ferramentas de topografia. Você instala pinos de recalque na estrutura. Concretou a fundação? Está subindo o primeiro segmento do pilar? Insere no concreto, na estrutura desse pilar, um elemento fixo e, com equipamentos topográficos, você vai monitorando a posição deles. A cada etapa, você vai fazendo uma leitura, conferindo a evolução dos recalques conforme os carregamentos vão sendo aplicados. Depois da obra pronta, ao longo de toda a vida útil da edificação, você mantém essa instrumentação posicionada e, de tempos em tempos, faz o pedido de controle. Consegue, então, avaliar o desenvolvimento dos recalques tanto na etapa construtiva quanto na fase de uso da edificação. Durante obra, identificado qualquer problema, você está com a sua equipe mobilizada. Qualquer intervenção se torna mais fácil do que no momento posterior, quando os usuários ou moradores já estão no edifício. O transtorno e os custos são bem maiores.

AECweb Responde – Constatada a patologia, como devem ser realizados os reparos?

Gisleine – Muitas vezes, as pessoas ficam preocupadas com o aparecimento de trincas e fissuras, que possuem um impacto visual. E querem logo fechá-las sem conhecer a causa real dessas aberturas. O primeiro passo é tentar identificar a origem. Se for, realmente, um problema de recalque diferencial, isso precisa ser tratado primeiro. Para isso, em geral, as soluções passam por reforços das fundações, a inserção de elementos adicionais. Ou seja, tratar as fundações originais de forma a evitar que o problema avance ou, em casos extremos, como já foi feito em Santos, até trazer a prumo os edifícios que ficaram tortos. São intervenções feitas nas fundações, reforçando, estabilizando ou mantendo a estrutura como está. Ou, em casos mais críticos, reaprumando esses edifícios. Essa é a primeira etapa a ser realizada. E aí, em um segundo momento, vamos tratar as trincas e fissuras, já com a garantia de uma fundação estável, sem mais recalques diferenciais. Tratamos, então, as consequências, ou seja, as patologias que decorreram desse recalque diferencial. Reforços de fundações são, em geral, obras complexas, de custo elevado, que precisam ser muito bem estudadas e analisadas. Por isso, é importante ressaltar aquela ideia de monitoramento desde o início da construção. Trata-se de um ponto importante, que facilitaria muito qualquer tipo de intervenção. Mas isso não se aplica aos prédios antigos. Aí já tem que entrar, realmente, com esse tipo de solução mais complexa, de reforços das fundações.

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Colaboração técnica

Gisleine Coelho de Campos – Engenheira civil pela Universidade de São Paulo, com mestrado e doutorado, também pela USP, na área de geotecnia. Pesquisadora do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT), atua também como professora e orientadora dos cursos de pós-graduação promovidos pela instituição. Realiza trabalhos na área de geotecnia, com ênfase em fundações e escavações, tendo experiência no desenvolvimento de pesquisas e serviços técnicos especializados em fundações por estacas, instrumentação de obras geotécnicas, investigação geológico-geotécnica, ensaios em modelos reduzidos, inspeções técnicas de obras de infraestrutura e em temas relacionados à engenharia urbana, geotecnia e riscos.