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O que é gêmeo digital e como aplicar na construção civil?

Representação computacional de qualquer objeto, incluindo construções e empreendimentos, conceito ganha impulso com o avanço da metodologia BIM e pode ser útil no monitoramento e manutenção de pontes, viadutos e arenas esportivas

Publicado em: 01/11/2022

Texto: Eric Cozza

foto de uma pessoa segurando uma espátula e uma tabua com argamassa líquida em cima
Projetista poderá agregar funções além do projeto, operando como guardião das informações técnicas, do monitoramento e da manutenção preditiva, cuidando da obra durante todo o ciclo de vida da construção. (Imagem: Shutterstock)

Você já ouviu falar em gêmeo digital? Trata-se de uma representação virtual, computacional, de um ambiente ou de um ativo físico, que pode ser, por exemplo, um carro, uma ponte ou um prédio.

A partir da utilização da metodologia BIM na concepção do projeto, associada a recursos de IOT (sigla para internet of things ou internet das coisas), o conceito de gêmeo digital pode revolucionar, por exemplo, o monitoramento de pontes, viadutos, arenas esportivas e diferentes tipos de edificações.

A partir de dados obtidos por sensores, é possível monitorar e garantir a segurança de elementos estruturais durante toda a vida útil da obra, além de estimar a necessidade de manutenção e detectar eventuais acidentes e até fenômenos meteorológicos que coloquem os usuários em risco.

Para nos ajudar a compreender melhor o assunto e, em especial, saber como tal conceito se aplica na prática, nós convidamos para o podcast AEC Responde o engenheiro civil e projetista estrutural, João Luis Casagrande, presidente do conselho de administração da Casagrande Engenharia. Confira abaixo a entrevista.

AECweb Responde – O que é, exatamente, um gêmeo digital e como pode ser empregado na construção civil?

João Luis Casagrande – Como o próprio nome indica, trata-se de uma cópia, um modelo computacional perfeito de algo real, uma representação virtual de um objeto ou processo físico. Algo que possa ser monitorado em tempo real, espelhando uma estrutura ou qualquer elemento no seu computador. Seria, mais ou menos, como se você estivesse dentro de um corpo humano, durante 24 horas, medindo todas as taxas de sangue, batimentos e pressão. Um gêmeo digital seria uma cópia disso em um computador, que nos permitisse acompanhar todas as reações e os resultados. Trata-se de uma cópia fidedigna, exata, a partir de um modelo computacional. Hoje, com o BIM e o apoio de sensores, você consegue obter todos esses dados.

“Na construção civil, costuma-se pensar somente no custo de implantação, ou seja, no capital gasto para construir. Só que ele representa em torno de 30% das despesas ao longo da vida útil da obra. Os outros 70% correspondem à manutenção. O gêmeo digital será empregado para termos manutenções preditivas e não emergenciais, que são muito mais caras”
Eng. João Luis Casagrande

AECweb Responde – E como o conceito pode ser empregado na construção civil?

Casagrande – Na construção civil, costuma-se pensar somente no custo de implantação, ou seja, no capital gasto para construir. Só que ele representa em torno de 30% das despesas ao longo da vida útil da obra. Os outros 70% correspondem à manutenção. O gêmeo digital será empregado para termos manutenções preditivas e não emergenciais, que são muito mais caras. A Lei de Sitter trata da evolução progressiva dos custos das manutenções. Ao se arbitrar um custo unitário para a fase de projeto, a necessidade de intervenção na fase de construção implica em um acréscimo de cinco vezes o valor inicial. Se a intervenção for na fase de manutenção preventiva, já significará 25 vezes o valor de referência. No caso de corretiva, será 125 vezes o custo inicial. Com a implantação de sensores, já durante as obras, você conseguirá evitar esses custos, pois acompanhará as falhas e os problemas com muito mais eficiência, evitando gastos elevados de manutenção corretiva.

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AECweb Responde – Como se dá essa composição entre o projeto desenvolvido em BIM, o gêmeo digital e os sensores de internet das coisas para o monitoramento de obras?

Casagrande – Conseguimos fazer, hoje, uma modelagem estrutural no computador, um modelo em BIM com todas as características da obra. Minha formação é de engenheiro de estruturas, então não vou falar de acabamento e outros componentes que podem ser modelados, mas a metodologia serve para qualquer elemento de construção. Quando você faz a modelagem, quando desenvolve o projeto em BIM, coloca as características dos materiais. Na parte do concreto, vou informar, por exemplo, o módulo de elasticidade, resistência à compressão, taxa de armadura, força de protensão etc. Terei tudo isso na minha modelagem. Os sensores instalados após a obra vão me dizer se a resistência à compressão, a partir de ensaios que sempre fazemos, bateu ou está um pouco diferente. Aí atualizamos nosso modelo para aqueles valores e já saberemos quais são os espectros de resposta que esperamos dentro da modelagem. O que vai acontecer depois disso já estará com o BIM, com o modelo parametrizado da obra já construída, que será colocada em operação com diversos sensores. É aí que está o segredo da coisa: o sensor e a comunicação. Estamos desenvolvendo sensores com um custo mais eficiente, para que seja possível, a partir da internet das coisas, ter automaticamente, dentro de uma inteligência artificial, a comunicação sobre o momento da manutenção. E são sensores básicos, comuns: acelerômetros, strain gages (deformação), anemômetros para os ventos etc. Com tudo isso, você vai saber se a estrutura foi exposta a algo diferente do preconizado no projeto e, se necessário, solicitar uma inspeção. Não acho que o trabalho do ser humano será deixado de lado. Mas você vai conseguir saber, com antecedência, sem que haja uma exposição da estrutura ou de qualquer material de acabamento. E antes de ser obrigado a fazer uma manutenção emergencial, que custa mais caro. Essa é a base da ideia. E já é algo é factível, realizável. Temos um sistema pronto e, cada vez mais, estamos ensaiando os sensores. Trabalhamos com três universidades: o Instituto Mauá de Tecnologia, na Grande São Paulo, o Instituto Superior Técnico de Lisboa, em Portugal, onde concluí meu PhD e estou fazendo pós doutorado, e a Universidade de Barcelona, na Espanha.

“Veja o exemplo das concessionárias de rodovias: algumas gerenciam mais de 10 mil pontes e viadutos. Como cuidar de tudo isso apenas com as inspeções realizadas por seres humanos?”
Eng. João Luis Casagrande

AECweb Responde – O senhor tem dito que tal conceito pode impactar a atividade dos projetistas de estruturas e até o modelo de negócio dos escritórios. Poderia explicar melhor?

Casagrande – O que eu vou falar é um pouco polêmico, mas é algo que enxergo para os próximos 25 ou 30 anos. Hoje, o projetista é demandado por uma construtora, um incorporador ou por uma concessionária para desenvolver um projeto. E a maior parte da vida útil se concentra nas fases de construção e operação. Esse modelo de apenas vender o projeto vai acabar. O projetista deverá ser o profissional que vai monitorar e cuidar da estrutura durante toda a vida útil. As construtoras vão dar a garantia do período de construção, mas todas as informações estarão nas mãos do projetista e do dono da obra. Quem não se adaptar a isso não terá mais espaço, porque ninguém mais vai querer contratar somente o projeto. A tendência do mercado é o dono da obra querer cuidar do seu próprio ativo. Veja o exemplo das concessionárias de rodovias: algumas gerenciam mais de 10 mil pontes e viadutos. Como cuidar de tudo isso apenas com as inspeções realizadas por seres humanos? Imagine poder identificar porque determinada obra possui aquela fissura, se foi uma questão de carga a mais ou uma reação do próprio material empregado. Por isso, estamos desenvolvendo o sistema também para as obras já existentes. A partir de alguns ensaios, vamos conseguir reunir as características necessárias para carregar o modelo. Isso pode facilitar também uma ampliação de rodovia, a mudança vocacional de um píer, ou a necessidade de sobrecarga em qualquer edificação.

AECweb Responde – Há viabilidade econômica para investir em um sistema complexo como esse? Para qual tipo de obra seria mais interessante?

Casagrande – Já é realidade em alguns países, mas eles ainda não têm o modelo em tempo real, que é o que pretendemos fazer. Mas vejo com grande potencial para aqueles ativos que possuem obrigação de inspeções de manutenção. A ideia é reduzir custos. A operação e a manutenção são muito mais caras do que a construção em si. Então, você verá o sistema em pontes, em edificações como aeroportos e estádios de futebol. Sempre que você tiver um investimento muito alto com manutenção. Hoje isso já é possível. São estruturas que possuem respostas mais exatas e assertivas. Diferente, por exemplo, de um prédio residencial, cuja implantação ainda é cara e o custo de manutenção acaba sendo dividido entre vários usuários. Não há um único dono. Costumo dizer que, para pontes, estádios e aeroportos, em 20 anos, será inevitável. Na área residencial, talvez daqui a 50 anos. O desafio ainda é o custo: obter sensores mais baratos. Por isso, estamos trabalhando com pessoal de mecatrônica e telecomunicações, para chegar em algo viável para a implantação em todas as pontes e estádios a um preço de 30 a 40 mil reais. Óbvio que, para obras maiores e mais complexas, o custo será mais alto, mas o retorno é equivalente, pois os gastos com operação e manutenção são bem maiores.

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Colaboração técnica

João Luis Casagrande  – PhD em engenharia civil pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa, em Portugal. Engenheiro civil pela Universidade Santa Úrsula com ênfase em estruturas. Presidente do Conselho da Casagrande Engenharia e Consultoria, com mais de 400 projetos desenvolvidos no Brasil e no Exterior. Diretor de pontes e estruturas da ABECE (Associação Brasileira de Engenharia e Consultoria Estrutural).