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Como funcionam as garantias na construção civil brasileira?

Norma técnica publicada no final de 2022 se aplica às edificações de qualquer natureza e condiciona cobertura à realização das manutenções devidas e ao uso correto dos produtos e sistemas

Publicado em: 12/08/2024

Texto: Eric Cozza

A imagem mostra um edifício residencial de cinco andares com uma fachada que combina tijolos vermelhos e painéis claros, típicos de construções urbanas. O prédio possui varandas em todos os andares, e há janelas distribuídas uniformemente ao longo da fachada. Em frente ao edifício, há uma área gramada com algumas sombras de árvores, sugerindo um ambiente arborizado ao redor. No canto superior direito, há um selo azul com o texto GARANTIA, relacionado com as garantias na construção civil brasileira.Publicação da “NBR 17170 – Edificações – Garantias – Prazos recomendados e diretrizes” teve como objetivo acabar com zonas cinzentas da legislação e minimizar os efeitos da chamada “indústria de vícios construtivos” muito criticada por construtoras e incorporadoras. (Imagem: Pixabay/Montagem: Cozza Comunicação)


A questão das garantias na incorporação e construção imobiliária sempre rendeu muita polêmica no Brasil. Responsabilidades, prazos e coberturas são alvos de discussões intermináveis entre construtores, incorporadores, condomínios, fornecedores, usuários, peritos e operadores do direito.

No final de 2022, foi lançada a Norma NBR 17170 – Edificações – Garantias – Prazos recomendados e diretrizes. Um dos principais objetivos foi, exatamente, minimizar zonas cinzentas, pontos de entendimento dúbio e lacunas deixadas pela legislação.

Mas, afinal, como funcionam as garantias na construção civil brasileira? O que mudou com a nova norma? Quais são as responsabilidades de cada um dos agentes envolvidos na incorporação e construção imobiliária?

Para aprofundar o assunto, nós convidamos para o Podcast AEC Responde a engenheira civil, mestre, doutora e sócia-diretora da NGI Consultoria e Desenvolvimento, Maria Angélica Covelo Silva, que foi assistente técnica da coordenação da Comissão de Estudos de Elaboração da Norma.

Ouça o áudio na íntegra e/ou leia entrevista, a seguir.

AECweb – Como funcionam as garantias na construção civil brasileira? Quais são os requisitos técnicos e legais?

Maria Angélica Covelo Silva – Do ponto de vista legal, no Brasil, não temos uma lei específica para bens da construção civil. Possuímos uma lei geral, o Código Civil, que define no artigo 618 a responsabilidade de cinco anos por parte do construtor, do proprietário da obra e, por uma interpretação jurídica, também para o incorporador, embora isso não esteja explícito no texto. Esses cinco anos são focados na solidez e segurança, que são os termos empregados pelo Código Civil. Tais conceitos são muito abertos e sempre deram margem para diversas interpretações. Por isso, o Comitê Brasileiro da Construção Civil, o CB-002, entendeu que era preciso melhorar tais definições e a delimitação do que os cinco anos abrangem. Garantia não serve para cobrir problemas que aparecem no longo prazo. Para isso, há uma responsabilização civil. Garantia tem outro foco. E foi isso que a norma veio fazer: definir melhor tudo isso. Muitos acreditam que o Código de Defesa do Consumidor define prazos de garantia, mas não é verdade. O CDC estabelece prazos para reclamações e não de garantia.

AECweb – Como a NBR 17170 deve ser utilizada pelas incorporadoras, construtoras, prestadoras de serviços, fabricantes e administradoras de condomínio?

Maria Angélica – Vale lembrar que a NBR 15575, a Norma de Desempenho, publicada em 2013 e que se aplica às edificações habitacionais, incorporou ao seu próprio texto prazos de garantia praticados pelo mercado. O problema é que tais garantias se limitavam às edificações habitacionais. A NBR 17170 se aplica às edificações de qualquer natureza: aeroportos, shopping centers, hotéis etc. Outro ponto é que os agentes envolvidos têm as responsabilidades bem definidas dentro da norma. A incorporadora e a construtora possuem a incumbência de oferecer os prazos recomendados nas condições ali especificadas. É preciso que o sistema da qualidade das empresas reconheça as falhas previstas na norma para cada sistema construtivo e trabalhe para reduzir os riscos de ocorrências. Os fabricantes devem oferecer as garantias compatíveis para as construtoras, além de disponibilizar orientações de uso e manutenção, que possam ser repassadas para o usuário final. Vale lembrar que a garantia está condicionada à realização das manutenções devidas e ao uso correto dos produtos e sistemas. As administradoras também precisam orientar os clientes nesse sentido. A norma definiu até a necessidade de comprovação da execução das manutenções necessárias para que não se perca a garantia. É importante conhecer e seguir as responsabilidades determinadas ali.

AECweb – A senhora mencionou pontos de interação entre a NBR 17170 e a Norma de Desempenho, a NBR 15575, e também com a NBR 5674, que trata da manutenção de edificações. Quais outros aspectos são importantes nesse sentido?

Maria Angélica – A Norma de Desempenho trouxe os conceitos de vida útil de projeto e efetiva. É preciso ter clareza de que garantia e vida útil são duas coisas distintas. Não posso achar que, por ter um ano de garantia em um determinado item, isso significa baixa vida útil. Quando você compra um carro com tem três anos de garantia não quer dizer que ele não funcionará mais após esse prazo. Há um capítulo, um item da norma de garantias que procura estabelecer tal diferenciação, mas ainda permanece alguma confusão de entendimento no mercado. Outro ponto é o conceito de sistema, que foi trazido pela Norma de Desempenho e incorporado também pela NBR 17170. Todos os prazos estão relacionados e ordenados por sistema: estrutural, pisos, vedações, coberturas, equipamentos etc. A NBR 5674 já definia as responsabilidades quanto à manutenção e à elaboração de programa específico nesse sentido. A norma de garantias fez a remissão, puxando de lá essas responsabilidades também.

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AECweb – Fala-se, há algum tempo, na presença de uma indústria de ações sobre vícios construtivos no Brasil. Isso ainda existe? Como funciona e como escapar dela?

Maria Angélica – Ainda há e não sei se, um dia, vai deixar de existir. Costumo dizer que é a indústria dos 4 anos e 11 meses, ou seja, um pouco antes de o empreendimento completar os cinco anos que, erroneamente, são identificados como prazo de cobertura total. Aí alguém vai lá e propõe para o condomínio fazer uma inspeção completa de coisas que, eventualmente, não passaram por manutenção adequada ou não foram providenciadas no tempo devido. Tornou-se, infelizmente, algo recorrente no mercado. Como evitar isso? Primeiro, fazendo um acompanhamento mais ativo – algo que muitas incorporadoras e construtoras estão praticando. Ou seja, uma assistência técnica não apenas reativa, mas que acompanhe de perto o condomínio e a edificação que foi construída e entregue. A ideia é verificar se há problemas surgindo, para não deixar que alguém externo, um terceiro, venha apontar coisas indevidamente. O segundo ponto está relacionado à conscientização dos proprietários e usuários de que não se trata de uma prática correta. Afinal, precisamos ter consciência, como consumidores, dos nossos direitos, mas também dos limites e das responsabilidades existentes.

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Colaboração técnica

Maria Angélica Covelo Silva – Engenheira civil pela Universidade Estadual de Londrina, é mestre em engenharia na área de construção pela Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutora em engenharia na área de construção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Diretora da NGI Consultoria e Desenvolvimento, atua como consultora nas áreas de tecnologia, gestão da qualidade e desempenho na construção civil. Trabalha desde os anos 1990 em comissões de estudos de elaboração de normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). Atuou na comissão de estudos da NBR 15575 – Edificações habitacionais – Desempenho na elaboração do texto-base e como assistente técnica da comissão de estudos da norma de garantias em edificações – NBR 17170.