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Restauro do Palácio da Fazenda do Ceará recupera as cores originais da fachada

Construído há 95 anos, o prédio foi o primeiro em concreto armado do estado. Tombado em 1982, passou por várias intervenções ao longo do tempo. Veja tudo o que foi realizado no último trabalho de restauro

Publicado em: 14/04/2023

Texto: Redação AECweb/e-Construmarket

foto de uma pessoa segurando uma espátula e uma tabua com argamassa líquida em cima
(Foto: Frederico Barros)

Situado no centro de Fortaleza (CE), o prédio do Palácio da Fazenda do Ceará foi inaugurado em 1927 com projeto do arquiteto José Gonçalves da Justa. A construção atendeu à necessidade do órgão de controle das mercadorias que chegavam ao porto, o qual, na época, ficava logo em frente.

Com características neoclássicas e ecléticas, o edifício, que abriga a sede principal da Secretaria da Fazenda do Ceará (Sefaz-CE), tem dois pavimentos com pé-direito duplo e, na cobertura, uma torre envidraçada que funcionava como observatório da movimentação dos navios.

“Suas paredes periféricas foram erguidas em alvenaria, mas as colunas e pilares internos, em concreto armado. Esbeltos e elegantes”, conta o arquiteto Frederico Barros, sócio-gerente do escritório F. Restauro e coordenador da restauração realizada nas fachadas do prédio em 2022.

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O que foi restaurado

Em 1981, a pintura na cor rosa sobre base amarela foi substituída por cinza com detalhes em branco. Assim permaneceu até o ano passado, quando o último trabalho de restauro recuperou os tons originais. A identificação das cores se fez através das prospecções exploratórias, fotos antigas e testes cromáticos com a participação de fabricantes.

“Optamos pelo tom mais harmônico, que chegou muito perto do original”, relata Frederico Barros. Elementos como os frisos, as guirlandas e a platibanda foram pintados em amarelo. Em uma das fachadas, no entanto, Barros deixou, como testemunho, uma pequenina amostra em cinza, com um QR Code que, acessado, aborda esse período.

A cúpula da torre, em formato hexagonal, tinha rachaduras e infiltração de água, o que pediu algumas obras. Depois de limpa externamente, recebeu vários anéis de aço de alto a baixo, amarrados na estrutura original, além de impermeabilização e pintura. As esquadrias em madeira da torre foram removidas, recuperadas e pintadas em cinza.

A torrinha tem dois pavimentos, com duas escadas. A que serve o andar superior é helicoidal com guarda-corpos em ferro fundido. Tudo foi escovado para a retirada de pinturas anteriores, aplicado o prime e a tinta PU. Já a escada em madeira que liga a torre ao segundo pavimento estava em péssimo estado de conservação e foi possível recuperá-la, inclusive com substituição de peças, assim como as portas.

Os vidros dos três óculos foram trocados e a madeira tratada. A laje da cobertura também foi impermeabilizada em alguns pontos. “Essa torre não é frequentada e tem função apenas decorativa. Não faz mais sentido colocar um fiscal controlando o fluxo de navios, porque o porto já não existe no local”, afirma.

Entre os elementos escultóricos, as partes quebradas dos coruchéus foram removidas e novamente coladas. “Alguns foram totalmente refeitos, porque se esfarelavam. Foi preciso ser criativo para produzir o molde. Como o silicone puro é muito flexível, adicionamos areia. As peças foram preparadas com argamassa e pérolas de isopor, armadas com ferro. Os coruchéus ficaram leves e pudemos fixar com parafusos em inox e cola”, explica.


foto de uma pessoa segurando uma espátula e uma tabua com argamassa líquida em cima
(Foto: Frederico Barros)

No coroamento das duas fachadas, aparecem o símbolo da secretaria e carrancas diferentes das aplicadas na arquitetura neoclássica. “Ao fotografar de perto, vimos que a figura tem olhos amendoados, nariz achatado e largo e lábios mais grossos. Não chega a ser uma figura negra, mas um indígena. Não há registro quanto à motivação do arquiteto ou seu autor”, fala.

Abaixo da balaustrada, as duas mísulas – peça que suporta o peso das sacadas – em cada balcão apresenta carrancas diferentes, rostos. “Prospectando, encontramos cores como o olho preto, o bigode branco e o rosto em tom alaranjado. Refizemos exatamente como foi um dia. Hoje, quem está na rua vê essas carrancas com todos os seus detalhes. É impactante”, diz.

A equipe de restauradores aplicou o mesmo método na recuperação das folhas de acanto e dos 16 leões. Internamente, o carpete foi retirado, revelando o piso de ladrilho hidráulico original, que valoriza o prédio.

As polêmicas das restaurações

As intervenções feitas ao longo das décadas no patrimônio tombado da Sefaz suscita o debate quanto aos obstáculos e desafios do restauro. “As intervenções feitas em prédios históricos refletem novas necessidades, incorporam a cultura do momento e as coisas vão se modificando. Isso vai sendo marcado no edifício a ferro e fogo”, comenta Barros.

Por exemplo, diante da expansão do serviço e do número de funcionários do órgão, o pé-direito alto foi dividido por mezaninos em concreto no térreo e no andar superior. Apenas algumas áreas, como a entrada e o gabinete principal, permanecem com o pé-direito original.

“O filósofo Walter Benjamin (1892-1940), falando sobre restauro, dizia que a cada mudança imposta, se esvai um pouco da alma do edifício. Ou seja, a cada restauração, a matéria do edifício é alterada. O material que estava ali saiu e entrou outro novo”, diz. No caso dos mezaninos, removê-los implicaria uma reconstrução. Já o carpete que cobre o piso em ladrilho hidráulico pode ser facilmente retirado.

O projeto de restauro, segundo Barros, deve ser norteado pela compatibilização da estética com a historicidade do edifício. É preciso retirar os elementos espúrios, frutos de intervenções, deixando tudo mais limpo. “De forma que possamos perceber a inteireza da edificação. Ao mesmo tempo, devemos valorizar fatos importantes que estão ali como cicatrizes, que contam o seu percurso temporal”, diz. No caso de patrimônio tombado, a Instrução de Tombamento deixa clara a decisão e traz uma série de informações úteis para o restauro.

foto de uma pessoa segurando uma espátula e uma tabua com argamassa líquida em cima
(Foto: Frederico Barros)

O arquiteto esclarece que uma interferência espúria é aquela que não tem a intenção de valorizar a edificação, mas feita para improvisar pontualmente. Sem critério ou técnica. O seu oposto é a intervenção pensada, discutida e que revela a alma da cultura que está intervindo. “Essa, sim, é uma ação que deve ser preservada no processo de restauro”, defende Barros.

“Por exemplo, um forro rebaixado ou tabiques de madeira podem ser retirados, sem agredir o edifício. Mas, no caso do Palácio da Fazenda, os mezaninos executados em concreto interferem como se fossem pontes de safena. Se forem eliminados, vai macular ainda mais o edifício. Portanto, devem ser deixados como está”, afirma.

Caso não existissem, poderiam hoje ser executados com estrutura metálica de aço inoxidável e guarda-corpos em vidro, independentemente da estrutura do edifício. Escolhas como essa permitem identificar o passado e o presente.

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Colaboração técnica

Frederico Barros – Arquiteto e Urbanista pela da Universidade Federal do Ceará – UFC (1982), com pós-graduação em Restauração de Bens Culturais Móveis (Pintura de Cavalete e Escultura em Madeira Policromada) no Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais, vinculado à Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais – CECOR/EBA-UFMG (1986). É sócio-gerente da empresa F. Restauro que realizou trabalhos em Fortaleza (CE), como Diagnóstico Geral, Prospecções, Mapa de Danos e Histórico da Estação Ferroviária; a restauração da Fonte das Nereidas, localizada na Praça Murilo Borges e do conjunto escultórico do “Passeio Público”, monumento nacional; e das fachadas da Secretaria da Fazenda do Ceará.