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Reconstrução de cidades requer planejamento e soluções técnicas

As ações se iniciam com o mapeamento das condições dos territórios atingidos pelas cheias e avançam na oferta de infraestruturas e promoção de habitações dignas e permanentes. Saiba mais!

Publicado em: 30/07/2024

Texto: Hosana Pedroso

(Foto: Sujid/Adobe Stock)

(Foto: Sujid/Adobe Stock)

Em resposta aos desafios de reconstruir cidades após as trágicas inundações ocorridas no último mês de maio no Rio Grande do Sul, a instância gaúcha do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS) produziu um manifesto. Nele, elenca as medidas necessárias sob os prismas do planejamento urbano e regional, e da moradia digna. Mestre em arquitetura, Bruna Bergamaschi Tavares, copresidente do instituto, aborda a complexidade do problema e os passos da reconstrução.

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“Inicialmente, é essencial mapear as cidades afetadas, considerando uma série de componentes de análise multidisciplinar. Devemos olhar a configuração de cada uma, observando onde estão localizadas, sua infraestrutura, habitabilidade e sua inserção geográfica, geológica e hidrográfica, entre outros dados”, afirma.

“É um olhar para as escalas do território atingido, desde uma comunidade, um bairro, uma cidade. O mapeamento deve, é claro, ser vinculado ao planejamento urbano, até porque há muitos municípios que operam sem planos estratégicos ou que possuem áreas em situação de irregularidade”, continua.

Para além da tragédia que afetou o estado gaúcho, a profissional estende a necessidade das análises para reconstruir regiões impactadas por eventos climáticos, como deslizamento de terras, rompimento de barragens e queimadas. “Ou mesmo por destruição causada por crimes ambientais”, acrescenta.

O planejamento e a execução de obras prioritárias devem se voltar para a infraestrutura urbana, de maneira a possibilitar a construção de habitações no local. Ela se refere à infraestrutura viária, de saneamento, drenagem e de equipamentos públicos.

Vista aérea de casas inundadas durante enchente. Em algumas delas, a água quase atinge o telhado.(Foto: The Little Hut/Adobe Stock)

“Muitas cidades brasileiras se formaram a partir da urbanização espontânea e, somente depois, mediante as necessidades das populações, foram implantadas as infraestruturas. No entanto, a consolidação prévia da infraestrutura que possibilita a divisão de lotes e a construção de moradias é essencial para fazer valer o conceito-chave de ‘direito à cidade’. Afinal, a moradia digna não se restringe à casa onde cada um vive”, afirma.

Deve-se reconstruir a cidade no mesmo local atingido pelo desastre?

De acordo com Bruna Tavares, a decisão de reconstruir no mesmo local atingido pelo desastre deve ser antecedida da análise da condição natural do território.

Essa é uma discussão polêmica, que deve ser feita com apurado embasamento técnico. Os estudos vão determinar o impedimento ou, também, propor soluções técnicas para que as pessoas voltem a ocupar o espaço com segurança.

“No caso da região metropolitana de Porto Alegre, a capital e as cidades de Canoas e São Leopoldo já têm seus sistemas de diques que deveriam proteger contra enchentes. No entanto, por uma série de motivos, não conseguiram barrar as inundações. Mas é importante buscar novas tecnologias que podem aprimorar essa infraestrutura e permitir a reconstrução nos próprios locais”, propõe Tavares.

Cidade inundada após enchente. No horizonte, há um pôr do sol entre as nuvens de chuva.(Foto: narak0rn/Adobe Stock)

Além dos aspectos técnicos, entram na equação as emoções das pessoas diante de processos de remoção do lugar onde habitam. Esse é um fator que perpassa a história da urbanização das cidades brasileiras. A arquiteta se refere aos casos em que a população é retirada por questões de ocupação irregular, ou porque a terra é alvo do interesse do mercado imobiliário.

“É preciso considerar que as pessoas estão vivendo num lugar com o qual têm um vínculo natural. São processos sempre muito violentos e, neste momento tão sensível, é importante não remontarmos a esse histórico”, adverte.

Tempo técnico x tempo político

A reconstrução de regiões atingidas por eventos climáticos passa pela urgência de abrigar populações desabrigadas e, em princípio, não corresponde à ânsia política e social. “Entendemos que existem soluções de curto, médio e longo prazo e que é difícil tratar tudo, com imediatismo, dentro da responsabilidade que os espaços e territórios exigem”, diz.

No caso de providências habitacionais, ela aponta para soluções em curto prazo sem, no entanto, defender as cidades provisórias, montadas com as casas da ONU, para moradia por até três anos, prazo que deixa de ser provisório. “Aqui no estado, as populações seriam deslocadas para áreas distantes, com as quais não têm qualquer vínculo. É mais uma forma de precarização da vida de quem já sofreu o trauma de perder tudo”, diz.

Vista aérea de uma rua inundada durante enchente na cidade. Existe uma pessoa com água no nível da cintura.(Foto: rafaelcampezato/Adobe Stock)

Uma das principais linhas de defesa do IAB-RS é a reutilização de prédios públicos e privados abandonados, como proposto pelo governo federal para o estado gaúcho. Segundo a arquiteta, já foram feitas flexibilizações do programa Minha Casa Minha Vida Entidades. E estabelecida, também, a iniciativa de compra de imóveis prontos e semiprontos, até o teto de R$ 200 mil/unidade, pelo poder público para quem perdeu suas casas.

“A destinação de imóveis ociosos para habitação de interesse social é uma luta de direito a moradias, que vem de muito tempo. A questão se relaciona intimamente com a função social da propriedade, conforme a Constituição”, lembra Tavares. A solução traz a possibilidade de abrigo em espaços das cidades que já contam com infraestrutura e que estejam fora das áreas de risco.

Cidades insustentáveis

Bruna Tavares aponta a forte contradição entre a necessidade de tornar as cidades cada vez mais sustentáveis para enfrentar as mudanças climáticas e como elas vêm se desenvolvendo de fato no país. Porto Alegre é um exemplo que se reproduz em boa parte dos municípios brasileiros, de liberalização dos Planos Diretores para a construção de empreendimentos imobiliários.

“Na capital gaúcha, legislativo, executivo e o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental alteram o regimento urbano com esse fim. O que é contraditório com o ambiente social e natural da cidade. São decisões anteriores à tragédia, mas consequentes ao que está acontecendo. Muitos desses projetos vão na contramão da real sustentabilidade, que implica áreas verdes e encostas preservadas, permeabilidade do solo urbano e mínimo controle das ondas climáticas”, explica.

Vista aérea da cidade de Porto Alegre, com destaque para o centro administrativo do município.(Foto: Jair/Adobe Stock)

O rigor no cumprimento de determinações legais de ocupação de territórios pode evitar inundações e queda de barreiras em municípios mais afastados das capitais, no interior dos estados. É o caso da legislação do entorno de rios, que impede a ocupação numa faixa de 30 metros da margem. “Muitas vezes, não é o que acontece”, fala.

Além disso, a reconstrução próxima aos rios é muito desafiadora, porque o rio é um limite da natureza e as cheias vão se tornando cada vez mais intensas, levando tudo ao seu redor.

Arquitetos são ouvidos na reconstrução?

O IAB-RS vem se articulando em várias frentes, principalmente com o poder público e a sociedade civil, desde o início das inundações. “Esse é um dos grandes trabalhos do instituto em defesa da pauta urbana nas questões do planejamento, num sentido técnico. Conseguimos transmitir algumas diretrizes importantes, inclusive em nosso manifesto, abordando tanto os aspectos do planejamento quanto da habitação e de como eles devem se relacionar neste momento”, conta Tavares.

A comunidade gaúcha de arquitetos e urbanistas tem se mobilizado em âmbito institucional e, também, na forma de coletivos que mantêm vínculos com comunidades ou que se propuseram a prestar determinados serviços de melhoria das habitações. “Os profissionais podem colaborar tanto na ação direta da arquitetura da edificação como com sua grande capacidade de atuar no planejamento das cidades e da mediação do poder público sobre o controle do regramento das infraestruturas nesses espaços onde as pessoas habitam”, afirma Bruna Tavares.

Por fim, os arquitetos defendem a responsabilidade do poder público de garantir o bom atendimento à população, para que todos possam morar numa cidade com infraestrutura. “É um direito que só pode ser conquistado através do Estado, atuando como mediador das relações sociais”, destaca, lembrando que essa imposição é necessária até mesmo para evitar que as pessoas fiquem abandonadas e vulneráveis ao avanço da especulação imobiliária nos territórios.

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Colaboração técnica

Bruna Bergamaschi Tavares – Arquiteta e Urbanista formada pela UFRSG (2016), especialista em assistência técnica, habitação social e direito à cidade pela UFBA (2018), mestre em planejamento urbano e regional pelo PROPUR/UFRGS (2021). Atua na rede Br Cidades desde 2019. É copresidente do IAB-RS na gestão 2023-2025.