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Marco legal prevê ampliação da malha ferroviária no país

Entrevista com Vicente Abate, presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer)

Publicado em: 07/06/2022

Texto: Redação AECweb/e-Construmarket

malha ferroviaria brasileira
(Foto: Ricardo Botelho/Divulgação)

Décadas de abandono das ferrovias brasileiras trouxeram prejuízos à indústria nacional de trens e ao meio ambiente. Em entrevista ao portal AECweb, Vicente Abate conta que a ociosidade chega a 80% na produção de vagões e locomotivas para cargas e a 100% para passageiros.

A nova legislação, em vigor desde dezembro passado, deverá ampliar até 2035 a participação desse modal dos atuais 20% para 40% de toda a matriz brasileira de transporte de cargas. Está nos planos a criação de uma política pública para a implantação de linhas de passageiros de média e longa distância, porém, uma ampla malha ainda é um sonho.

AECweb – O Brasil, hoje, tem os mesmos 30 mil km de ferrovias de 1920. Chegou perto dos 40 mil km no final dos anos 50. O que aconteceu?

Vicente Abate – Em 1957, foi criada a Rede Ferroviária Federal (RFFSA), que absorveu toda a malha antes em poder da iniciativa privada. Já em 1971 foi a vez da Fepasa, de São Paulo. Na falta de investimentos públicos e políticas para setor, teve início na década de 1990 o processo de concessões das linhas existentes – muito deterioradas – à iniciativa privada.

AECweb – O chamado ‘rodoviarismo’ teve peso no abando das ferrovias?

Abate – Como defendemos a integração dos modais de transporte, não creditamos o desmonte das ferrovias ao ‘rodoviarismo’. Ou seja, à política do período JK de incentivo à indústria automobilística e, consequentemente, de construção de rodovias. Mas, hoje, elas respondem por 60% do transporte de cargas na matriz brasileira.

AECweb – Qual o prejuízo para a economia brasileira do desmonte das ferrovias?

Abate – Houve enormes prejuízos tanto para as próprias ferrovias que, durante décadas, ficaram no limbo, como para a sociedade em termos ambientais. Afinal, o transporte ferroviário é modal com elevada eficiência energética e baixa emissão de gases de efeito estufa. A tecnologia dos novos trens permite a sua operação online, com menor consumo de diesel. Comparativamente, o consumo é 10% menor do que o do rodoviário. Soma-se a mistura de 20% de biodiesel ao convencional, com estudos para atingir 25% – no rodoviário, gira em torno de 11%. Num futuro próximo, haverá, também, a utilização de hidrogênio. Além disso, a indústria ferroviária brasileira já produz locomotiva elétrica de manobra, a bateria. A primeira foi adquirida pela Vale e a próxima será entregue para os Estados Unidos.

O transporte ferroviário é modal com elevada eficiência energética e baixa emissão de gases de efeito estufa
Vicente Abate

AECweb – Qual o percentual, hoje, do transporte de cargas e passageiros por ferrovias?

Abate – Na matriz brasileira de transporte de cargas, as ferrovias respondem por 20% do total. Os planos atuais do governo projetam o crescimento para até 40% em 2035. O transporte de passageiros se restringe às linhas existentes nas metrópoles, o que abrange trem, metrô, VLT e monotrilho, num total de cerca de 15% de toda a matriz de transportes do país. Há, ainda, um total de 1800 km relativos aos dois corredores de carga que contemplam, também, o de passageiros: o da Vale que liga Vitória a Minas, e a Carajás, no Norte/Nordeste do país. Fora disso, não temos nada mais para longa distância. Esperamos que o edital que ligará São Paulo a Campinas seja publicado ainda este ano. É um trecho de elevada demanda, com saturação das rodovias que fazem o trajeto.

AECweb – E quais as parcelas nas mãos da iniciativa privada e do Estado?

Abate – Na área de cargas é praticamente 100%. A única exceção é a Ferroeste, ligação entre Guarapuava e Cascavel, pertencente ao Estado do Paraná, com 250 km, mas que está em processo avançado de privatização. Todas as demais foram concedidas e assim permanecem. Dos 30 mil km totais, 30% são densamente aproveitados pelas atuais concessionárias. Mas outros 30% são subutilizados, muitos deles ociosos que já foram ou serão devolvidos ao poder público. O restante está muito deteriorado e fora de operação.

AECweb – Como o abandono das ferrovias prejudica a indústria fabricante?

Abate – A ociosidade da indústria de locomotivas e vagões para cargas chega a 80% e, na área de transporte de passageiros, é de 100%. Entre os problemas que enfrentamos está falta de isonomia tributária em relação aos importados, que são isentos de impostos, PIS e COFINS. Por outro lado, somos exportadores de componentes. Os melhores momentos da indústria começaram em 2003, quando houve uma retomada da produção, principalmente em decorrência dos investimentos feitos pela Vale. Chegamos, em 2005, a produzir 7600 vagões, parte deles para exportação. Esse cenário se manteve, inclusive com as aquisições do metrô de São Paulo entre 2007 e 2008. Ocorrerá, no próximo ano, a exportação de 4700 vagões contratados de uma indústria associada da Abifer e, com isso, o setor retornará aos patamares de 2015, marco da queda na produção.

AECweb – Entre os planos atuais para o setor, há perspectiva de criação de modelos lucrativos para transporte de cargas, como as short lines e containers?

Abate – Nos Estados Unidos, há mais de 600 short lines, que representam cerca de 30% de todo o transporte de cargas por ferrovias – volume equivalente ao que as atuais concessionárias transportam no Brasil. Acreditamos que essa modalidade será a nova fronteira, para que se possa ocupar as linhas ociosas e as devolvidas, e eventualmente construir novas a partir do marco legal já em vigor. Atualmente, o transporte de cargas em containers não passa de 3%, é muito baixo. O crescimento futuro dessa modalidade, envolvendo minérios, cimento e produtos agregados de construção civil, entre outros, poderá chegar a 15% dentro do transporte ferroviário. Entre as inovações tecnológicas da indústria ferroviária está o lançamento feito há três anos do duble stack, vagão que permite carregar containers empilhados. O uso já é feito na linha que liga Sumaré (SP) a Rondonópolis (MT).

AECweb – A tecnologia das ferrovias remanescentes e abandonadas poderá ser atualizada?

Abate – As concessionárias fizeram investimentos vultuosos nas linhas que administram, desde a década de 1990. Até então, a indústria estava estagnada. Agora, com os leilões, os processos de renovação antecipada de concessões e autorizações para ferrovias em todo o país, o futuro é animador. Certamente, serão R$ 60 bilhões em investimentos e parte deles irá para a revitalização da malha, com dormentes de concreto e de aço, além da fabricação de vagões e locomotivas.

AECweb – Esse avanço virá com o novo marco legal em vigor desde dezembro passado?

Abate – Sim, até porque o marco legal – Lei 14273 – estabelece principalmente segurança jurídica para os novos investimentos, tanto para quem já assinou os contratos como para os que virão a fazê-lo com o Ministério da Infraestrutura. O governo vai facilitar à iniciativa privada a elaboração dos estudos, licenciamentos ambientais e desapropriações. Mas isso leva certo tempo, em torno de até cinco anos. Hoje, estão em vigor sete concessões, número que já chega a mais de 15 empresas autorizatárias contratadas. Com esse amplo leque, crescem as perspectivas da indústria brasileira.

AECweb – Haverá espaço para o transporte de passageiros em linhas de longo percurso no país, como ocorre em toda a Europa?

Abate – O marco legal não abre mão do transporte de passageiros sobre trilhos. Nesse sentido, a Secretaria Nacional de Transportes Terrestres, do Ministério da Infraestrutura, está há cerca de dois anos elaborando uma política nacional para média e longa distância. Acreditamos que os trechos ociosos possam, mediante demanda, ser aproveitados para o transporte de passageiros. A linha São Paulo-Campinas, por exemplo, poderá reabrir o caminho para o projeto do trem de alta velocidade entre São Paulo e Rio de Janeiro. Resta encontrar um formato infralegal, pois ainda não há legislação a respeito, para promover a criação de linhas de passageiros mais imediatamente. O brasileiro merece. Basta ver que a China tem uma malha de trens de alta velocidade em extensão maior do que a de toda a Europa. Os Estados Unidos também investem nessa área.

Acreditamos que os trechos ociosos possam, mediante demanda, ser aproveitados para o transporte de passageiros. A linha São Paulo-Campinas, por exemplo, poderá reabrir o caminho para o projeto do trem de alta velocidade entre São Paulo e Rio de Janeiro
Vicente Abate

AECweb – O transporte de passageiros por ferrovia é lucrativo?

Abate – Não é lucrativo no mundo todo, exige sempre subsídio do Estado tanto para a construção das linhas quanto para a operação. Mas, em vários países, como França e Japão, são estatais. Aqui, é possível ter essa operação pela iniciativa privada, como ocorre com várias linhas do metrô paulistano e algumas férreas da CPTM. O setor privado não tem tanto fôlego para que possa prescindir do Estado para passageiro.

Colaboração técnica

Vicente Abate
Vicente Abate – É Engenheiro Metalurgista, formado pela Escola de Engenharia Mauá, pós-graduado em Tratamento Termomecânico de Metais pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo; com MBA em Marketing pela FGV-SP e Babson College-EUA; PDE (Programa de Desenvolvimento de Executivos) pela Fundação Dom Cabral. É Presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer) e consultor das empresas Greenbrier Maxion e Amsted-Maxion. Atua em outras entidades setoriais, ocupando os cargos de diretor do Sindicato Interestadual da Indústria de Materiais e Equipamentos Ferroviários e Rodoviários (Simefre) e a vice-presidência da Associação Brasileira de Fundição / Sindicato da Indústria da Fundição no Estado de São Paulo (Abifa/Sifesp) e da Associação Brasileira de Ensaios Não Destrutivos e Inspeção (Abendi).