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Lei de requalificação do centro de São Paulo gera polêmica

O programa Requalifica Centro prevê o retrofit de edifícios e sua conversão para habitações populares. A depender da sua regulamentação, há o temor da gentrificação da região

Publicado em: 08/09/2021

Texto: Redação AECweb/e-Construmarket

Requalifica Centro
O Requalifica Centro prevê o retrofit de edificações construídas até 23 de setembro de 1992 (Foto: Thiago Leite/Shutterstock)

Há décadas, urbanistas debatem a necessidade de requalificação do centro da capital paulista, plena de infraestrutura subutilizada. Agora, o tema se tornou polêmico com a rápida aprovação de projeto de lei do executivo, em julho de 2021. O Requalifica Centro prevê o retrofit de edificações construídas até 23 de setembro de 1992, quando entrou em vigor o atual Código de Obras. Abrange imóveis vazios e degradados localizados numa área de 6,4 mil km² da região central.

O número de prédios e de unidades-alvo do programa é incerto. “O Secovi-SP [Sindicato da Habitação de São Paulo] não tem essas informações”, afirma Claudio Bernardes, presidente do Conselho Consultivo do sindicato do setor imobiliário. É aguardado decreto do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, que definirá os próximos passos de estímulo ao uso misto dos imóveis.

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Questionamentos

No site da SP Urbanismo, a empresa pública informa que, na Câmara Municipal, o projeto de lei “foi debatido em duas audiências públicas, ambas com participação de representantes da gestão municipal”. O arquiteto Fernando Túlio, presidente do departamento paulista do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-SP) discorda.

Em sua tramitação, o projeto de lei que criou o programa Requalifica Centro não foi objeto de nenhuma consulta pública em órgãos colegiados existentes
Fernando Túlio

“Em sua tramitação, o projeto de lei que criou o programa Requalifica Centro não foi objeto de nenhuma consulta pública em órgãos colegiados existentes”, diz, citando instâncias previstas no Plano Diretor Estratégico, como o Conselho de Política Urbana, o Conselho Gestor da Operação Urbana Centro e a Câmara Técnica de Legislação Urbanística.

Segundo Túlio, o projeto foi diretamente do poder executivo para o legislativo que, em tempo recorde – menos de 15 dias –, debateu e aprovou a matéria, sancionada pelo prefeito. “A inexistência de consultas públicas é uma ilegalidade”, crava o arquiteto, pois infringe o princípio da gestão democrática, estabelecido no Estatuto da Cidade (lei federal 10.257 de 2001).

Funcionamento do programa

Bernardes confirma que os imóveis serão adquiridos por incorporadoras e construtoras que, posteriormente, vão requalificar e colocar no mercado para venda ou locação. “O interesse dos empresários e investidores pelo programa dependerá ainda de seu bom funcionamento”, informa.

A lei Requalifica Centro oferece uma série de incentivos para atrair investimentos:

• remissão dos créditos de IPTU;
• isenção de IPTU nos três primeiros anos, a partir da emissão do certificado de conclusão de obra;
• aplicação de alíquotas progressivas para o IPTU pelo prazo de cinco anos após a isenção, sendo que no 6º ano o imóvel atinge a alíquota integral do imposto;
• redução para 2% da alíquota de ISS para os serviços relativos à obra de requalificação (engenharia, arquitetura, construção civil, limpeza, manutenção, meio ambiente);
• isenção de ITBI aos imóveis objetos de requalificação;
• e isenção de taxas municipais para instalação e funcionamento por cinco anos.

“Esses incentivos, sem uma legislação específica e eficiente para a ocupação de edifícios existentes, talvez não sejam suficientes para atrair interesse pelo programa”, antecipa Bernardes.

De acordo com Túlio, os impactos socioeconômicos, cenários e projeções do perdão de dívidas acumuladas de milhões de reais em IPTU não foram contemplados pelos estudos técnicos. “Soma-se o fato de que esses imóveis não serão, necessariamente, aproveitados para uma finalidade social”, diz o arquiteto.

Proposta do IAB-SP

Objetivando o equilíbrio dessa equação, o IAB-SP propõe a modulação dos incentivos, que seriam ampliados na proporção da oferta de maiores contrapartidas sociais. Por exemplo, imóveis retrofitados e destinados para habitação de baixíssima renda – de até dois salários-mínimos – teriam 100% de desconto nessas taxas. Já o segmento de unidades populares poderia ter 70% de isenções, que cairiam para 50% no caso dos que vão atender demanda de mercado.

“Claro que esses números precisam ser discutidos a partir de uma base de dados, de evidências, para conseguir equilibrar os incentivos de maneira que ocorra uma transformação responsável”, destaca Fernando Túlio. Caso contrário, ao invés de promover melhorias e garantia ao direito à moradia, o programa poderá acelerar o processo de agravamento das desigualdades sociais.

Risco de gentrificação

Cláudio Bernardes entende que, se não forem tomadas medidas, pode ocorrer um processo de gentrificação na região do Requalifica Centro. O arquiteto vai além ao alertar que há lacunas na lei, gerando insegurança jurídica com possíveis resultados negativos.

“Projeto desse porte deve ser muito bem desenhado e seus impactos delimitados, para evitar que se transforme em seu oposto. Ou seja, há a possibilidade de que a lei promova uma transformação de menos, deixando de enfrentar os problemas para qualificar e melhorar o centro da cidade. Ou, ainda, que na sua implementação ocorra alteração no perfil socioeconômico da população da região, a chamada gentrificação”, fala Túlio.

Se o programa for exitoso, haverá valorização. É difícil estimar o prazo, em função das variáveis políticas e econômicas envolvidas
Cláudio Bernardes

Ele acrescenta que a maioria dos prédios predominantes nos 6,4 km² são anteriores a 1992, o que amplia o potencial de transformação previsto, sem que tenham sido debatidas as medidas de contrapartida de interesse social.

A expectativa do Secovi-SP quanto à valorização dos imóveis na região está diretamente vinculada às possibilidades de sucesso do programa. “Se o programa for exitoso, haverá valorização. É difícil estimar o prazo, em função das variáveis políticas e econômicas envolvidas”, finaliza Bernardes.

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Colaboração técnica

Cláudio Bernardes
Cláudio Bernardes – É engenheiro civil formado pelo Escola de Engenharia Mauá e Master of Engineering pela da University of Sheffield (UK). Foi professor na área de Desenvolvimento Urbano, no curso de pós-graduação em Negócios Imobiliários na FAAP, no curso de MBA em Negócios Imobiliários da ESPM, no curso de Investimentos Imobiliários da FGV. Foi coordenador de Relatório de Políticas Urbanas Nacionais no âmbito do World Urban Campaign para o Habitat III. Atualmente é professor do curso de MBA em Real Estate do IBMEC. Foi presidente do conselho brasileiro do Urban Land Institute (USA) e do Secovi-SP por dois mandatos (2012/2014; 2014/2016). Atualmente preside o Conselho Consultivo do Sindicato. É presidente da Ingaí Incorporadora S/A, empresa que atua no mercado imobiliário há 72 anos, com foco na área de desenvolvimento urbano.
Fernando Túlio
Fernando Túlio – Graduado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, mestre em políticas públicas pela Fundação Getúlio Vargas e doutorando pela FAU-USP. Foi pesquisador do Lincoln Institute of Land Policy, do Laboratório de Direito à Cidade e Espaço Público (LabCidade), do Laboratório de Infraestruturas Urbanas Fluviais (Metrópole Fluvial), ambos da FAUUSP, e do Centro Argentino de Implementação de Políticas Públicas para a Equidade e o Crescimento (CIPPEC). Foi assessor especial de gabinete, chefe de gabinete substituto e secretário adjunto substituto da Secretaria de Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de São Paulo entre 2013-2016, durante a revisão do marco regulatório de política urbana. Foi presidente do Conselho Curador da FAU-USP (2009/2011). É presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil – São Paulo, gestão premiada pelo APCA de 2019 na categoria arquitetura, e coordenador da Comissão de Política Urbana e Habitação Social da direção nacional da entidade.