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Enchentes e desastres naturais: como arquitetos e urbanistas podem ajudar?

Esses profissionais podem atuar em diversos setores visando o desenvolvimento de cidades resilientes e sustentáveis. Entenda!

Publicado em: 17/06/2024

Texto: Hosana Pedroso

(Foto: Christian/Adobe Stock)

(Foto: Christian/Adobe Stock)

As instâncias de poder no Brasil revelam certa desconsideração com o trabalho técnico de profissionais de arquitetura e urbanismo, geologia e botânica, entre outros, na formulação de políticas públicas para as cidades e os territórios.

Essa conduta cotidiana não se altera nem mesmo diante da emergência climática, causa de grandes tragédias, como as inundações no Rio Grande de Sul e a seca registrada na Amazônia, de maneira inédita em 2023. Em contrapartida, arquitetos e urbanistas atuam individualmente no ativismo junto às comunidades, de forma coletiva através de suas entidades de classe e institucional nas instâncias de poder.

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“Em órgãos de planejamento, podemos colaborar com uma visão ampliada para enfrentar a crise do clima, fortalecendo as instituições públicas. Estamos presentes na academia desenvolvendo pesquisas, capacitação de gestores públicos e representação nos conselhos municipais, como o da habitação e patrimônio”, afirma a doutora em arquitetura e urbanismo Maria Elisa Baptista, membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável (CDESS) da Presidência da República e ex-presidente do IAB Nacional e do Departamento de Minas Gerais.

Prioridades ocultas

A categoria dos arquitetos e urbanistas tem refletido profundamente sobre essa desatenção dos administradores públicos. E constata que existe uma grande diferença entre o que se planeja e o que se faz nas cidades. Isso se torna nítido com as legislações municipais, como os Planos Diretores, de Habitação e de Saneamento.

Baptista oferece como exemplo situação ocorrida em Belo Horizonte (MG) há alguns anos: “Havia uma lista de dez obras prioritárias, indicadas após amplos estudos técnicos da prefeitura. A primeira obra escolhida e executada estava fora das selecionadas. Foi simplesmente tirada ‘do bolso do colete’ do prefeito da época”.

Vista aérea de uma cidade alagada por conta de enchentes(Foto: Cloudcatcher Media/Adobe Stock)

A sociedade, desde os moradores aos técnicos, empresários e políticos, não tem uma visão compartilhada do que a cidade deveria ser. “Não se tem um desenho de cidade a ser alcançada. Quem atua, projeta e constrói a cidade é o capital imobiliário. Considerando que a feitura dos planos e leis resultam da correlação de forças, esse setor exerce forte pressão e o resultado é o plano possível, que beneficia o capital em detrimento das cidades”.

Nos últimos 30 ou 40 anos, houve um deslocamento do capital produtivo para o financeiro, que não tem pátria, consequentemente, não tem compromisso com a cidade.

Desafios das cidades

As mudanças climáticas vieram para ficar e impõem às cidades dois importantes desafios. A começar por aqueles que acontecem em seu próprio território, como as áreas de risco, de inundação e de deslizamentos, e sobre como elas vão lidar com isso. “Mas as cidades têm um problema maior ainda com o território onde estão inseridas, em que ocorrem desmatamentos seja para a produção do agronegócio, extração de madeira ou mineração. Soma-se a contaminação das fontes de água e a alteração da geografia natural do lugar. Esse território tem criado fortes impactos nas cidades”, destaca, observando que, diante desse quadro, de nada adianta focar apenas nas cidades.

A arquiteta cita o cenário mineiro, onde, das 340 barragens de mineração, 47 estão classificadas no nível de risco. “Se elas cedem, tem cidades abaixo”, alerta e menciona outro exemplo: “A serra do Gandarela, na região metropolitana de Belo Horizonte, além de sua beleza e riqueza natural, é responsável pelo abastecimento de água de boa parte da capital. Se a Vale conseguir autorização, vai instalar ali o maior projeto de mineração a céu aberto do Brasil – projeto Apolo. Será uma devastação de proporções inimagináveis”.

Empreendimento de mineração com várias pistas e uma barragem ao fundo(Foto: Funtay/Adobe Stock)

Portanto, olhar para o território é essencial. Em casos como esse, a expertise técnica de arquitetos e urbanistas, somada à de outros profissionais, tem interferência ainda menor. “Afinal, as decisões são tomadas pelo Congresso Nacional e agências reguladoras, que escapam a qualquer tentativa de ativismo profissional”, lamenta.

Cidades resilientes

A arquiteta chama a atenção para o Decreto 12.041 do governo federal, assinado no Dia Mundial do Meio Ambiente (05 de junho último), que instituiu o programa Cidades Verdes Resilientes. O objetivo é potencializar os serviços ecossistêmicos nas cidades, buscando melhorias, como a de áreas verdes e recursos hídricos integradas a outros sistemas de estruturação territorial. E, principalmente, desenvolver a capacidade institucional dos entes federativos e a difusão de pesquisas científicas e de soluções tecnológicas sustentáveis no ambiente urbano.

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“É muito importante isso, porque nós já sabemos o que precisa ser feito nas cidades, como plantar árvores e desimpermeabilizar o solo, entre outras práticas”, sublinha, acrescentando que o programa federal, como qualquer outro programa, não é mandatório. Quando as prefeituras aderem, são beneficiadas com verbas destinadas à sua implementação.

“Na contramão, temos prefeituras que adotam sistematicamente ações de reposição do asfalto em várias áreas, contrariando o propósito de suas políticas iniciais”, destaca. Na cidade de São Paulo, por exemplo, a imprensa noticia que a prefeitura tem uma lista de 265 ruas de paralelepípedos que serão asfaltadas até o final de 2024. A ação, já iniciada, foi recusada em alguns bairros, pois os moradores entendem que se trata de material permeável, ao contrário do asfalto.

O poder institucional dos arquitetos

Se, de um lado, falta a escuta do poder público à atuação dos arquitetos e urbanistas, as entidades setoriais cumprem seu papel em defesa da sustentabilidade das cidades. É o caso do projeto IAB/Urban 95, criado em conjunto com a fundação holandesa Bernard van Leer. Intitulado “Plano de Bairro Amigável à Primeira Infância”, cria condições seguras para os pequenos, o que acaba abrangendo todos os cidadãos.

Detalhe de uma rua de paralelepípedo, ao fundo um prédio iluminado(Foto: Vernaglia/Adobe Stock)

“Outra iniciativa voltada para crianças e adolescentes é o projeto ‘CAU Educa’, que se propôs a discutir nas escolas a cidade e a arquitetura do ponto de vista da qualidade dos espaços que habitamos, formando consciência”, conta.

A assessoria técnica para habitações de interesse social, promovida pelo CAU, IAB e Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas, existe desde os anos 1970. “Temos arquitetos organizados em coletivos, prestando assessoria técnica às comunidades”, diz, acrescentando que, em Belo Horizonte, por exemplo, há duas organizações que atuam em ocupações, visando a possibilidade de urbanização e condições mais razoáveis diante das alterações climáticas.

Baptista revela, assim, a existência de iniciativas setoriais, “um verdadeiro trabalho de formiguinha”. Em 2023, em seminário realizado em Aracaju (SE), o CAU mapeou uma série de ações levadas à frente em todo o país por arquitetos e urbanistas junto às comunidades. “Paralelamente, há o permanente trabalho de convencimento dos órgãos públicos para uma visão mais holística das cidades e territórios, reunindo as várias profissões”.

Arquitetos no “Conselhão”

Participante da Comissão de Meio Ambiente do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável (CDESS), Maria Elisa Baptista relata que, entre os grupos de trabalho, tem o que discute a nova infraestrutura verde. Ou seja, como fazer com que as cidades se modifiquem para enfrentar os impactos do clima e, ao mesmo tempo, se tornem mais resilientes. O próprio governo tem um grupo que trabalha com esse tema.

Árvores muito verdes no primeiro plano e prédios modernos ao fundo(Foto: hallojulie/Adobe Stock)

“Acompanho, paralelamente, a Comissão de Combate às Desigualdades, que também lida com a questão da desigualdade climática, aqueles mais atingido por enchentes e deslizamentos. É a questão da ocupação desigual do território”, conta, explicando que as discussões e soluções são encaminhadas aos devidos ministérios e divulgadas internamente no governo. “Recebemos, também, equipes do executivo que estão debruçadas sobre temas como as cidades verdes”.

O CDESS cumpre o papel de colaborar com a geração de políticas públicas, reunindo representantes de vários setores, desde profissionais até empresários, lideranças indígenas a técnicos da área de petróleo. Estão ali por sua trajetória profissional, com boa presença de arquitetos e urbanistas.

“Nem sempre há consenso. Mas, exatamente por contar com a presença de empresários poderosos, permite a articulação de caminhos, como ocorreu na tragédia do Rio Grande do Sul”, comenta. Eles se uniram para colaborar com o governo, fazendo doações, oferecendo soluções técnicas e disponibilizando infraestrutura. “E temos, claro, os profissionais que se ocupam da reflexão e propostas de soluções. O IAB, por exemplo, tem essa competência. É um lugar muito rico”, conclui.

Colaboração técnica

Maria Elisa Baptista – É arquiteta e urbanista, mestre em Arquitetura e Urbanismo (UFMG) e doutora em Urbanismo (UFRJ). É professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Foi presidente do Departamento de Minas Gerais e presidente nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil. É conselheira do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável (CDESS) da Presidência da República e vice-presidente do Conselho Internacional de Arquitetos de Língua Portuguesa (CIALP).